É muito comum hoje em dia acreditar que as diferenças culturais entre os países ocidentais alcançaram níveis mínimos. Como se a globalização e o consumo tivessem criados sociedades homogêneas. A realidade, porém, é muito mais complexa do que parece. E falo isso com propriedade. Quando cheguei ao Brasil vinda da França me deparei com muitas questões que fizeram acender uma interrogação na minha cabeça. Certos aspectos dos brasileiros são impensáveis na França.
Entre as principais diferenças que me causaram um grande impacto e me fizeram pensar está a forma como o parto é encarado no Brasil. A realidade é que o mundo como um todo vive uma epidemia de cesáreas. Os avanços da medicina e nossa busca implacável por conforto e alívio das dores, ajudaram a popularizar o procedimento para níveis acima dos recomendados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) as taxas de parto por cesárea estão em 20% no mundo, um índice que dobrou nos últimos 15 anos. E mais: segundo a mesma organização apenas entre 10% a 15% dos nascimentos necessitariam ser realizados por esse procedimento.
No Brasil, porém, a situação é ainda mais preocupante. O país é o campeão mundial em cesáreas, que são realizadas em 55,5% dos partos. Esse índice é ainda maior quando olhamos para os partos realizados na rede privada de saúde: nos hospitais particulares as cesáreas chegam a 84%. A cesárea é cultural e vista como um privilégio.
Ao contrário, por exemplo, do que acontece na França, onde todas as mulheres fazem parto normal. Quando chega o momento de dar a luz, elas simplesmente vão para os hospitais onde são atendidas por enfermeiras, que sabem realizar o parto. Lá é comum que o momento do nascimento envolva apenas mulheres. Para nós, franceses, o nascimento de um filho é um acontecimento natural e, portanto, decidir dia e horário em que a criança vai nascer não faz qualquer sentido. A vida tem se tempo, e esse tempo precisa ser respeitado.
Já por aqui, existe aquela coisa patriarcal, do médico especialista que vai conduzir a mulher. Talvez esse seja um dos motivos das cesáreas serem tão populares e incentivadas no meio médico. Assim, podemos dizer que o parto é sim uma questão cultural e que está ligado aos papeis de gênero que ainda são reproduzidos e vivenciados. Encontrei um texto incrível de Carmen Beer, uma franco-brasileira, que aborda essa percepção cultural sobre o parto. Vale muito a pena ler, e você pode conferir aqui.
O parto humanizado e a mulher
Quando falamos em parto humanizado é importante entender que estamos colocando a mulher no centro da questão, não apenas por ser a responsável por gestar, mas como elemento central no processo de decisão. Por mais que isso possa parecer óbvio, não é bem assim que acontece na realidade. Muitas são as mulheres que relatam a pressão de médicos para optar pela cesárea. Mesmo quando elas já tinham se decidido pelo parto natural. Para isso, esses médicos não têm receios de usar justificativas técnicas das mais variadas e nós, como grávidas e apavoradas com a nossa saúde e de nosso filho, muitas vezes acabamos cedendo a esses argumentos e deixando de lado nossos planos iniciais.
Veja bem: não é a minha intenção julgar as mulheres que optam pela cesariana ou mesmo iniciar uma cruzada contra o procedimento. Em muitos casos a cesárea é fundamental por razões médicas. É preciso, porém, dar poder real de escolha para mulher, inclusive explicando os riscos envolvidos.
Mas a pergunta que não pode deixar de ser feita é: o que leva aos médicos brasileiros incentivarem tanto a cesárea e se intrometerem nas decisões das mulheres?
Entre os motivos possíveis dessa atitude podemos ponderar: o custo para as instituições de saúde; o tempo mais elevado do parto normal - capaz de durar horas; a imprevisibilidade do parto normal - o bebê pode chegar a qualquer momento; a maior remuneração do profissional de saúde na cesárea. O problema é que todos esses fatores, que em última instância estão ligados a aspectos financeiros e de comodidade, acabam se sobressaindo a uma ação natural associada ao sagrado que é o nascimento.
Não é nada natural o médico ou mãe escolherem o dia e horário que bebê vai nascer, desrespeitando o seu desenvolvimento. Somente o feto sabe quando ele estará pronto para vir ao mundo. Além disso, não podemos nos esquecer de que o parto por cesárea é um procedimento cirúrgico com riscos de uma série de complicações capazes de afetar a saúde da mulher e do bebê.
O parto humanizado é sobre respeitar a escolha da mulher e a naturalidade dos corpos. É um conjunto de práticas que busca tornar o parto menos medicalizado e hospitalar, oferecendo uma visão mais humana e acolhedora para a mulher e o bebê. O crescimento do parto humanizado nos últimos anos tem a ver com iniciativas da OMS no combate ao uso indiscriminado de procedimentos cirúrgicos nos nascimentos, mas também se relaciona a nova onda do feminismo. O ressurgimento do feminismo trouxe inúmeras discussões importantes, entre elas o empoderamento em relação ao próprio corpo. O corpo feminino vem deixando de ser praça pública. Mais e mais mulheres entendem que o corpo é delas e as regras são delas. O que significa desde não aceitar a invasão violenta desses corpos até ter o poder de decisão sobre como vão ser mães, seja em casa, na banheira ou mesmo no hospital.
Sim! É possível ter um parto humanizado em hospitais. É menos o lugar em que o ocorre nascimento e mais sobre como ele é conduzido e que práticas são realizadas. É fazer das mulheres donas delas mesmas, com poder de escolha que devem ser respeitadas. Aliás, o desrespeito a vontade da mulher no parto é um tipo de violência.
A violência obstétrica: precisamos falar sobre isso
Essa falta de respeito com a mulher na hora do parto, fez não apenas com que a cesárea se tornasse uma questão cultural no país, como também nos torna um dos territórios onde mais ocorre a violência obstétrica.
Como violência obstétrica podemos entender tudo aquilo que é feito no parto, ou um pouco antes, que é desnecessário e desrespeita a vontade da mulher, como:
- Estourar a bolsa sem necessidade;
- Realizar a episotomia (corte do períneo) para economizar tempo na hora do parto;
- Aplicar o hormônio ocitocina para acelerar o parto;
- Forçar a barriga da mulher para o bebê sair mais rápido;
- Utilizar instrumentos como fórceps sem necessidade;
- Insultar verbalmente uma mulher que exprime dor na hora do parto;
- Proibir a entrada de uma doula na sala de parto (pois só o marido tem autorização para ficar na sala do SUS);
- Indicar a cesárea em cima da hora sem que haja necessidade real.
Ou seja: é a apropriação do corpo da mulher e do processo reprodutivo pelas equipes de saúde através de tratamentos desumanos. O pior é que na maioria das vezes a mulher não sabe que está sendo vítima da violência obstétrica durante o parto. É comum que ela apenas descubra isso quando tudo já passou. Para muitas mulheres o poder do médico sobre seus corpos nesse momento é naturalizado.
Para que esse quadro mude, a informação é fundamental. Precisamos falar sobre violência obstétrica para que ela seja reconhecida como tal e assim as mulheres possam se defender e lutar contra mais esse abuso que atinge o feminino.
No Brasil, uma a cada quatro mulheres sofrem com a violência obstétrica. Entre a população negra esse índice é ainda mais alto: 66% das mulheres negras sofrem com esse tipo de violência, relevando mais uma vez toda a crueldade da desigualdade.Esse cenário não apenas é preocupante, como também muito triste. O parto devia ser o momento de uma das maiores alegrias da vida, não de, mais uma vez, sofrer violência.
O que vem mudando no Brasil?
Essa triste realidade vem sofrendo profundas mudanças em nosso país. O renascimento do parto é uma realidade!
Um dos grandes sinais dessa mudança é o crescimento visível do trabalho das doulas. Uma doula é uma assistente de parto, que não precisa ter necessariamente formação médica, que acompanha a mulher durante a gestação até os primeiros meses após nascimento atuando com foco no bem estar da mulher. Existe atualmente coletivos de doulas que atuam não apenas como redes de contatos e formação, mas também pela valorização da função, contra a violência obstétrica e na luta para permitir que a doula possa acompanhar o parto na sala dos hospitais. Essa é uma luta muito importante, pois a mulher que conta com o serviço de uma doula tem toda a confiança nessa profissional que esteve presente durante toda a gestação. Ela estar junto no momento do nascimento contribui para diminuir o estresse e o medo, além de aumentar a confiança. O que é bom para a mulher e ótimo para o bebê. Entre os coletivos de doulas queremos destacar o Coletivo Lumiar e o Coletivo Doulas Pretas, ambos com trabalhos sérios e belíssimos. E se você se interessou e quer saber mais sobre as doulas, recomendo muito essa matéria da Revista Cláudia.
Além das doulas, outras mudanças perceptíveis na cultura do parto no Brasil é a atuação das professoras de pilates que prepararam as mulheres para o momento do parto. São muitas profissionais incríveis espalhadas pelo país. Em São Paulo recomendo a Patrícia , do WP Pilates e Saúde, especialista em pré e pós parto. Ela me preparou para os meus dois partos normais aqui. Só para marcar mais uma vez diferença entre as culturas, na França, como todas as mulheres fazem o parto normal, o governo garante o direito de todas fazerem aulas de preparação para o parto gratuitamente. Essa é uma medida que deveria ser adotada no Brasil, inclusive para ajudar a amenizar o medo do parto normal que muitas mulheres têm.
Vale destacar ainda o aumento dos centros de informação sobre o parto, a amamentação, os cuidados básicos para a gestante e bebês recém-nascidos, etc. Esses centros podem ser encontrados em grandes cidades de diferentes regiões. Em São Paulo alguns exemplos são o Nucleo Cuidar e Maternidade Ativa.
Por fim, dentro da própria classe médica há um movimento de profissionais que buscam retomar o parto natural, fugindo da lógica da medicalização.
Essa discussão sobre o parto humanizado é muito importante. O nascimento é um momento único e que forja laços inquebráveis. É fundamental que as mulheres tenham o poder de decidir como elas querem viver esse momento. É fundamental que os seres humanos se entendam como parte da natureza e a deixe agir.
Se você se interessou pelo assunto, recomendo a leitura da coluna de Debora Diniz e Giselle Carino, publicada no El País em 2019, que fala sobre a violência obstétrica, você pode acessar aqui. E tambem, o documentario "O renascimento do parto" accessivel no Netflix.
Acredite, o mundo pode ser um lugar diferente se nós agirmos diferentes. Que o parto humanizado nos ajude a construir um mundo mais humanizado.
Até a próxima!