Provavelmente nem os melhores roteiristas seriam capazes de criar um ano como vem sendo 2020. A pandemia do Covid-19 atingiu o mundo todo e forçou uma mudança repentina de hábitos como talvez em poucos momentos antes na história. Sem vacina ou mesmo medicações com efeitos relevantes comprovados no combate a doença, o isolamento social tornou-se a principal forma de evitar que o novo vírus faça do planeta o palco de um genocídio, retardando a propagação do vírus e assim preservando a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde.
No Brasil as autoridades não chegaram a decretar medidas mais severas como o lockdown nem mesmo nas cidades mais atingidas pelo novo vírus, porém, estamos desde março em quarentena – aplicada em diferentes níveis - em todo o território nacional. Conforme o tempo passa, esse período obrigatório em casa vem mostrando que ao contrário do que algumas pessoas propagavam inicialmente, a pandemia não atinge a todos de forma igual, pelo contrário, ela escancara as desigualdades, tanto as sociais, quanto as de gêneros, tornando um desafio ainda ser mulher e ser mãe.
A pandemia e a sobrecarga nas mulheres
No já tão distante 2019, a consultoria internacional MamaLab, realizou uma pesquisa com mães questionando o que elas desejavam para 2020. Os maiores desejos encontrados foram: passar mais tempo com os filhos, não ter que escolher entre filhos e carreira e ter menos cobranças para ser perfeita – isso é tão cansativo de tantas formas... Bom, eis que chegou 2020 e parte desses desejos acabaram sendo atendidos, de um jeito meio torto é verdade. Mais especificamente aquele que diz sobre passar mais tempo com os filhos. Com homeoffice, homescholing e sem poder sair de casa, a convivência com os pequenos passou a ser de 24 horas.
Para muitas crianças essa mudança foi excelente, afinal, passaram a conviver com seus pais de uma forma que talvez tenham tido o privilégio de experimentar apenas quando eram bebês – embora muitos nem isso tenham tido a chance de vivenciar. Para as mães, porém, a nova realidade se traduziu em uma lista interminável de tarefas que se repetem a cada dia e que precisam ser conciliadas com suas obrigações do trabalho, levando não apenas ao cansaço, mas também produzindo impactos na saúde mental. A carga mental a qual as mulheres estão submetidas nesse momento é ainda mais brutal, sem falar das mães solteiras que sofrem com mais intensidade.
Segundo pesquisa da Catho - uma das maiores agências de emprego virtual do país – realizada online com 7.000 respondentes, 60% das mulheres afirmaram sentir os efeitos do isolamento social na saúde mental, com destaque para ansiedade, apontada por 79% destas. O levantamento ainda trouxe outros dados importantes, como as maiores dificuldades das mães em quarentena com o trabalho remoto: para 40,5% das respondentes, conciliar trabalho, tarefas domésticas e filhos é a grande dificuldade desse momento, o que nos leva ao segundo desejo das mulheres para 2020.
Realmente, neste momento não é possível escolher entre filhos e carreira, mas isso não quer dizer que isso vem sendo realizado da forma como esperávamos. Afinal, não ter que escolher entre filhos e carreira não quer dizer ter que resolver tudo ao mesmo tempo e eliminar a linha que separa vida pessoal da vida profissional. Fazer um reunião virtual ao mesmo tempo em que se tem que atender demandas dos pequenos não é uma mostra de como as mulheres são super-heroínas da multitarefas, mas sim como a divisão do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos ainda está mal resolvida. Sabe aquela história da jornada dupla? Ela está acontecendo de forma concomitante!
E se isso afeta a saúde mental das mães, o que dizer de sua produtividade profissional? Pesquisa realizada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), uma das principais agências de financiamento científico do país, apontou que apenas 10% das mulheres pesquisadores com filhos declaram ter tempo para seguir desenvolvendo seus projetos em casa. Para os homens com filhos o percentual sobe para 17,4%. Mesmo entre as mulheres que não tem filhos, o índice daquelas que vem conseguindo desenvolver o trabalho científico é menor em comparação aos homens na mesma condição: 32% a 36%. Embora a diferença aqui seja menor, levanta a hipótese que a divisão do trabalho doméstico ainda é desigual e sobrecarrega as mulheres.
O último desejo das mulheres para 2020 levantadas pela pesquisa da MamaLab, menos cobrança para serem perfeitas, parece ser ainda difícil de mensurar. Afinal, se por um lado mais pessoas entenderam as dificuldades da gestão familiar e residencial, isso não significa que esse entendimento se transmutará em empatia. A maior sobrecarga emocional e de trabalho, contudo, não é a única diferença de como a pandemia atinge os gêneros. Elas também estão mais expostas a violência, tendo sido registrado um aumento de 41,4% dos casos de feminicídio no estado de São Paulo. Essa informação consta do estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no estudo “Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19”, onde foram comparados os dados de violência doméstica dos meses de março e abril com o ano anterior. Embora o estado de São Paulo se destaque negativamente, houve aumento do feminicídio em praticamente todo o país, com um crescimento médio de 22,2%. Os pesquisadores afirmam que é difícil cravar que a causa do crescimento acima da média em São Paulo é a pandemia, uma vez que o estado já vinha registrando crescimento desse tipo de crime, porém, destacam que as mulheres que já viviam em situação de violência doméstica estão ainda mais vulneráveis com a necessidade de ficar em casa.
Como se não bastasse tudo isso, as mulheres ainda são um grupo com maior exposição ao risco de contágio da Covid-19.
Os maiores riscos de contágio das mulheres durante a pandemia
A quarentena, mesmo em suas versões mais rigorosas, mantém o funcionamento de serviços considerados essenciais. Além daqueles ligados a área da saúde, farmácias, supermercados e serviços de limpeza continuaram a funcionar. Acontece que no mundo todas as mulheres representam 70% dos profissionais em hospitais (detalhe: elas ocupam apenas 25% das posições de liderança no setor de saúde), 90% dos operadores de caixas de supermercados e 67% dos profissionais de limpeza. Na prática isso significa que as mulheres estão mais expostas ao contágio para que a sociedade possa sobreviver, estando super-representadas nessas funções que não maioria das vezes possui baixa remuneração. E como se não bastasse, elas ainda estão mais expostas a perda de emprego. No final de junho, sete milhões de mulheres já haviam deixado o mercado de trabalho no Brasil por conta da pandemia.
Todos esses fatores provocaram, no final de abril, uma manifestação da ONU Mulheres – entidade da Organização das Nações Unidas voltada a defesa e promoção da igualdade de gênero – recomendando aos governos dos países a adoção de medidas que atenuem o impacto da pandemia nas mulheres.
Além dos pontos que já destacamos aqui, como maior sobrecarga física e mental, e o aumento das ameaças de violência, a entidade destaca a maior exposição das mulheres ao contágio justamente por ocuparem postos chaves em atividades essenciais. Vale lembrar que todos esses efeitos nefastos ao feminino se agravam conforme a vulnerabilidade social. Nas regiões periféricas, a sobrecarga é maior, com crianças que não contam com estrutura para aulas remotas, bem como o risco de violência doméstica e a necessidade de sair à rua para garantir a renda familiar. Mudar toda essa situação depende, claro, da mudança de hábitos com relação aos papéis de gênero, mas também de uma maior sensibilidade das empresas com as suas profissionais, compreendendo a situação atual, além da implantação de políticas públicas que visem combater a violência e garantir a renda.
Sem entendermos a desigualdade de gênero escancarada pela pandemia e aproveitarmos o momento para agir de forma combater essa desigualdade de forma efetiva, o novo normal que tanto apregoam vai nascer com cheiro de naftalina. Com certeza muitas mulheres vão sofrer com a depressão e cansaço extremos pós-pandemia, e talvez isso volte a se tornar “invisível”.
Solidariedade, fraternidade, empatia e ciência. Essas são as chaves para transformamos o mundo hoje e construirmos um novo futuro possível.
Vamos juntes!
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